
O guia Michelin serve para vender pneus, não comida.
O guia Michelin é hoje um símbolo de prestígio e luxo, que foi criado para aumentar a venda de pneus.
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Uma França com apenas três mil carros
O guia de cozinha Michelin serve para vender pneus, não comida – alguma vez imaginou? Provavelmente não, mas antes de conhecer a razão que fundamenta esta afirmação, é necessário contextualizarmos.
Fundada em Maio de 1889 pelos irmãos Édouard Michelin e André Michelin, a empresa francesa – Michelin – veio a tornar-se na segunda maior empresa de produção e venda de pneus no mundo. Com uma receita superior a vinte e oito biliões de euros no ano de 2022, posiciona-se apenas atrás da empresa japonesa e concorrente – Bridgestone.
No ano de 1900, em França, onze anos após a sua fundação, existiam apenas cerca de três mil carros registados. Capazes de percorrer as mais longas distâncias, capacitavam apenas uma elite francesa de viajar rapidamente por várias regiões do país e até do mundo. Numa altura, em que algumas das mais longas travessias intercontinentais eram realizadas unicamente por meios marítimos. O avião comercial aparece apenas por volta dos anos vinte.
Mas assim sendo, como poderia uma jovem empresa de pneus ver crescer a sua receita anual, sem que isso dependesse necessariamente da produção de carros novos?
Trinta e cinco mil cópias de um guia para aficionados
Nesse mesmo ano, em 1900, os irmãos Michelin decidem publicar trinta e cinco mil cópias de um guia ao qual chamariam de – Guia Michelin. Este guia teria como propósito guiar não só os seus clientes de pneus, mas todos os amantes de carros até aos mais conceituados locais de França. Neste guia, existiam mapas, instruções de troca e reparação de pneus, estabelecimentos de mecânicos franceses, hotéis e estações de combustível espalhadas por França.
A Michelin estava, com isto, a proporcionar aos amantes de automóveis uma forma de conhecerem e de se relacionarem com a marca. Esta ação ajudou ainda a tornar o nome – Michelin – num tópico em ascensão.
Este guia foi mais tarde introduzido em mais de dez novas áreas durante a primeira década do século dezanove, como – Argélia; Suíça; Holanda; Alemanha; Espanha; Portugal; e outros;
A primeira hierarquia de estrelas Michelin
Após uma pausa na distribuição do guia, provocada pelo desencadear da primeira guerra mundial, a Michelin volta em força introduzindo no guia uma listagem de restaurantes. Retirando, por outro lado, qualquer publicidade existente neste que não fosse proveniente da marca mãe. Além disso, decide cobrar setecentos e cinquenta francos, equivalente a dois dólares e quinze cêntimos americanos pela aquisição do mesmo. Este conjunto de decisões resultam num crescimento de popularidade e, numa maior valorização da marca e do guia da Michelin, que em 1922 decide recrutar a sua primeira equipa de críticos gastronómicos. Estes agentes visitavam anonimamente restaurantes em prol do desenvolvimento do guia.
Em 1931 é introduzida pela primeira vez uma hierarquia de três estrelas Michelin para melhor avaliar um restaurante premiado.
* Uma estrela – “Um restaurante muito bom, dentro da sua categoria”;
** Duas estrelas – “Cozinha excelente, vale a viagem”;
*** Três estrelas – “Cozinha excecional, vale uma viagem especial”;
A pressão das elites e a expansão da marca Michelin
Com o crescimento do interesse popular pelo guia, a marca Michelin tornou-se um sinónimo de qualidade, ao ser associada a restaurantes de renome e estabelecimentos de luxo. Com isto, não só viu o seu produto valorizar, como ainda viu a procura pela marca aumentar. Em parte, provocada pela pressão das elites que excluíam aqueles que no seu grupo social não tinham carro, ou capacidade de visitar locais destacados pela Michelin.
Esta pressão provocou ainda uma crescente procura por carros por parte de todos aqueles que não se queriam sentir excluídos pela sociedade, ou que queriam melhorar o seu estatuto. Isto resultou também num aumento do consumo de pneus Michelin por parte destes consumidores.
Com a produção de carros em maiores quantidades e, mais tarde, a normalização destes na rotina de uma pessoa de classe média, a Michelin evoluiu gradualmente no mercado como uma marca bem posicionada sobre a concorrência. Sempre com um ideal de qualidade associado.
É então em 2005, que a marca expande para os Estados Unidos da América, onde destaca mais de quinhentos novos restaurantes, e ainda para o Japão, Hong-Kong e Macau.
A influência do guia na indústria gastronómica
Em 2008, Juliane Caspar é nomeada para ocupar a posição de direção do guia francês. A influência social que o guia Michelin detém sobre as várias comunidades em que se insere é tão grande, que a alemã faz com que a receita na indústria da gastronomia alemã aumente, sem realizar qualquer tipo de ação nesse sentido.
A Michelin é hoje uma importantíssima parte da indústria gastronómica e o objetivo de carreira de muitos chefs, disso não há dúvida. Gordon Ramsay, por exemplo, assume ter chorado ao ter perdido não uma, mas duas estrelas Michelin de uma só vez num dos seus restaurantes britânicos. Gordon que no seu portfolio mantém ainda sete estrelas, das dezasseis originalmente premiadas.
Falamos hoje na Michelin tanto na cozinha como no mundo dos carros, e a verdade é que o guia é também hoje uma fonte de receita de enorme valor para a marca. Esta que, aceita trocar a sua atenção sobre uma região turística, como o Facebook aceita trocar anúncios por dinheiro, claro. Mas não nos esqueçamos que estes Óscares da gastronomia, estes Bafta da cozinha, estão longe de justificar uma receita superior a vinte e oito biliões de euros anuais.
O governo sul coreano, criticado por aceitar pagar mais de um milhão de dólares americanos à Michelin para promover o país durante três anos (2017 – 2020), ou o governo tailandês que em 2017 chegou também a acordo com a marca para que esta ajudasse na promoção do país por quatro milhões e meio de dólares americanos, são apenas exemplos da receita proveniente do Guia Michelin.
O guia Michelin serve para vender pneus, não comida
No entanto, não nos percamos porque a Michelin não vende pratos ou livros de receitas mesmo que obviamente entenda de comida (ou não?). A Michelin tem a reputação que tem hoje devido a uma das decisões de marketing mais disruptivas à época, responsável pelo crescimento de popularidade e de receita da marca ainda hoje. Mas lembre-se, que o guia de cozinha Michelin serve para vender pneus, não comida.